Contos e Crônicas

Gincana

Naquele ano, somente quatro equipes se inscreveram para a gincana do bairro. Vitória, ao saber da pouca quantidade de equipes, se deu por campeã meses antes da competição. Sempre foi muito boa aluna, tirava notas altas, mas não sabia perder nem no par ou ímpar. Já houve muito choro na escola por causa da dificuldade de aceitar as regras. Em casa, muitos objetos foram quebrados devido à sua frustração. Na igreja também. Nem a psicóloga aguentou e nenhum remédio fazia efeito.

Numa tarde de outono, na saída da quermesse, Vitória encontrou Romildo, com quem conversou e perguntou em que equipe da gincana estava.

–  Equiloucura, respondeu Romildo. Vitória lhe disse:

–  Assim como no ano passado, vocês vão perder de novo. Com certeza, a minha equipe, Os Imparáveis, vai vencer, né?

A mãe de Romildo o chamou para ir embora e ele só teve tempo de pensar consigo mesmo o quão chata era aquela menina e como ela nunca sabia perder, tinha autoestima baixa e era insegura.

Vitória também voltou para casa, ligou para amigas da equipe e bolaram o plano para vencer a gincana. Virgínia, uma das companheiras, era enfática em dizer que era importante pensar no processo e não apenas no resultado, que mesmo que perdessem, tinham de valorizar o esforço. Vitória ficou furiosa, tinha zero empatia pelos sentimentos dos outros.

Vitória teve insônia dias antes da gincana. Uma das equipes desistiu, a Nota 10. Vitória se sentia cada vez mais empoderada e certa de que iria ganhar a competição de novo.

Contudo, a Equiloucura tinha se preparado muito bem, era o que diziam pelo bairro e que dificilmente perderiam dessa vez. No dia da competição, a Equiloucura tinha levado muita torcida para assistir às provas a realizar como corrida de cadarços, corrida sentado, estoura-bexiga e outras tantas. No final da manhã, o placar parcial era: Equiloucura com 76 pontos, Os Imparáveis com 69 e a Unidos Venceremos com 64. As provas da tarde valiam mais pontos e havia, principalmente, atividades de habilidade física. Vitória ficou muito preocupada, pois sabia que as concorrentes eram participantes fortes e mais velhos que a sua.

E assim foi acontecendo a gincana até divulgarem o placar parcial, às 14 horas. Equiloucura com 98 pontos e empate entre a Unidos Venceremos e Os Imparáveis com 91 pontos. Vitória começou a encontrar culpados e se fazia de vítima a cada minuto que passava. Na prova da Pichorra, discutiu com Bibiana da equipe Unidos Venceremos e tiveram de paralisar a competição para amansar a sua ira, pois queria alterar as regras do jogo. Foi ao banheiro chorando com suas fieis amigas, jurou se matar, mas foi contida. Voltou à quadra e soube que sua equipe havia sido punida devido à sua conduta, perdendo 10 pontos. Parecia o fim para Os Imparáveis. Entretanto, havia mais três provas até o final, podendo ainda reverter o resultado e passar à frente das adversárias. Era o que Vitória queria, tinha sangue e lágrimas nos olhos.

Às 15h, convocaram para a próxima prova, a Cegobol, que valia 25 pontos para quem vencesse, 18 para o segundo colocado e 10 para o terceiro. Era a grande chance de Vitória e, justamente, era ela quem participaria dessa prova junto com mais três colegas. Como tinha a necessidade de controle, ela mesma decidiu quem faria o que, qual papel de cada uma. Virgínia não podia acreditar nas atitudes de Vitória e, de certa maneira, todos os demais da equipe estavam contaminados pelo negativismo e chatice de Vitória.

A professora de Educação Física, Luzia, chamou os participantes de cada equipe, explicou as regras e fez o sorteio para ver quem começaria. Pela ordem a Unidos Venceremos começaria, seguida de Os Imparáveis e Equiloucura por último. Depois de uma longa batalha, o vencedor dessa prova foi a Unidos Venceremos, em segundo Os Imparáveis e em terceiro a Equiloucura. Com isso, o placar se embolou bastante, chegando praticamente a um triplo empate. Equiloucura com 135 pontos, Unidos Venceremos com 133 e Os Imparáveis com 130. Faltavam duas provas apenas.

Romildo foi convocado a participar da penúltima prova pela Equiloucura, Bibiana pela Unidos Venceremos e Raica pela Os Imparáveis. Se Romildo ganhasse, sua equipe somaria 15 pontos e poderia se declarar campeã por antecipação. Ele só queria ganhar da equipe de Vitória, pois se lembrava do que ela lhe havia dito semanas atrás na saída da quermesse. Depois dos jogos de perguntas e respostas sobre curiosidades sobre a cidade onde viviam, Conquista Real, a Unidos Venceremos levou a melhor e ficou em primeiro lugar, deixando a disputa ainda mais acirrada. Vitória por pouco não agrediu fisicamente a Raica. Vitória ficou vermelha com a derrota nessa prova e sabia que já era quase impossível vencer a gincana. Roía as unhas, suava, fazia cara de poucos amigos. Raica e outras amigas tentavam acalmá-la, dizendo palavras do tipo: calma, o importante é competir, temos de saber perder também, é parte da vida. Vitória olhava para as companheiras e não podia acreditar no que ouvia, mas dessa vez pelo menos não disse nada, só fazia cara e boca de choro, tipo criança mimada.

Às 16h50, chamaram para última prova. A torcida da Equiloucura já gritava “É campeã”, mas ainda havia pouca chance para a Unidos Venceremos virar o jogo e vencer a gincana. Dessa vez, os participantes tinham que usar suas forças no cabo de guerra. De fato, a Equiloucura levou a melhor e, consequentemente, foi a grande campeã daquele ano. A Unidos Venceremos não conseguiu cumprir a prova a tempo e, portanto, o segundo lugar geral ficou com Os Imparáveis. Vitória se lamentou muito, saiu chorando da escola na companhia de seus pais.

Anos se passaram e Vitória fez uma série de terapias e tratamentos. Aos 15 anos entrou para uma escola de artes marciais chinesas. Lá, aprendeu que as derrotas existem, mas que o sofrimento é opcional. Entendeu que ao perder batalhas, estava, na verdade, melhorando sua arte de manipular a espada. Participou de outras competições e compreendeu, finalmente, que, mais importante que saber, é nunca deixar de lado a capacidade de aprender, é ter resiliência e perder o medo do julgamento alheio ou da perda de seu status social.

Depois de se graduar em Educação Física, foi trabalhar com jogadoras de alto rendimento em uma equipe de basquete no interior de São Paulo. Hoje, tem sua própria empresa e ministra palestras a atletas de várias modalidades, cujos principais temas são superação, incentivo à empatia, controle das emoções e estímulo à colaboração. Sua frase final, escrita no último slide das apresentações, é: Tentar ganhar sempre. Se perder, que seja com dignidade e aprendendo com os erros.

Eric Ramón da Costa Jr.

Doutor em Estudos de Linguagens, professor de línguas estrangeiras e atualmente pesquisa sobre a diáspora chinesa no Brasil.
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